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domingo, 23 de maio de 2010

JOÃO PINHEIRO

O conto foi pouco cultivado nas primeiras fases da Literatura piauiense. Parece que o primeiro em salientar-se nesse gênero se chamou Francisco Gil Castelo Branco, diplomata, que serviu em Assunção do Paraguai e morreu na cidade francesa de Marselha. Em 1874 publicou "Um Figurino", uma só pequena estória, e dois anos depois entregava aos leitores "Contos a Esmo". Seguem-se diversos contistas como João da Cruz Monteiro ("O Major Irineu Gomes Coelho"), João Alfredo ("Contetos"), João Licínio de Miranda Barbosa ("Esmaltes"), Arquelau de Sousa Mendes, Júlio Emílio de Paiva Rosa ("As infelicidades de Tibério"). No século XX salientavam-se nesse tipo literário Amélia Bevilaqua e Clodoaldo Freitas. E mais perto de nós se encontram Esmaragdo de Freitas, Álvaro Ferreira, Lilizinha Carvalho, Edgar Nogueira, Fontes Ibiapina, para que se citem apenas os que passaram desta para melhor vida. Mas no meio desses cumpre colocar o principal deles, o que deu expressão ao conto regional piauiense, homenageado, ano a ano, com um concurso de contos que leva o seu nome - João Pinheiro, falecido no Rio de Janeiro mais de quarenta anos passados. Dentista da profissão, chegou a criar e vender o "Pó Ideal", dentifrício aromático.

Mas seguiria outros rumos - o magistério, em que se tornou mestre acatado de português; e as atividades intelectuais, respeitável estudioso de nossa história e de nossa vida literária, além de poeta e contista. Entre outros trabalhos, publicou uma história da literatura piauiense, em que fixa as suas fases iniciais, autores respectivos, analisando-lhes, embora sem profundidade, as obras que publicaram. Talvez o primeiro caminho seguro para os futuros intérpretes futuros. No terreno da ficção, publicou dois livros de contos - "A toa" e "Fogo de Palha", servindo-se do material das lendas ou de acontecimentos reais. Retrata com talento caracteres físicos e reproduz nos diálogos a fala sertaneja, com sinceridade. As suas descrições de cenários naturais parecem copiadas pela acuidade de pintor genial.

As páginas de João Pinheiro entusiasmam por virtude de um estilo simples e do modo tão dele de reproduzir cenas em que cabras corajosos do sertão duro se mostram em toda a arrogância nas lutas de suor e morte. O contista piauiense merece ser relido das novas gerações.

A. Tito Filho, 27/11/1987, Jornal O Dia.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

AINDA FOLCLORE

Fontes Ibiapina se realizou no difícil trabalho da obra de ficção, embora eu descreia da obra de ficção e acredite em que os escritores, nos contos e nos romances, reproduzam fatos e episódios da vida, inclusive aqueles de que foram intérpretes. E quando o escritor não copia a vida real, produz a obra literária com adaptação de lendas e tradições populares. O "Fausto", de Goethe, promanou de um conto popular. O "Dom Juan" tem origem folclórica. Rabelais inspirou-se na lenda de gigantes gauleses para a criação de "Gargantua". Gustavo Barroso observa muito bem que os temas dos povos são, em grande parte, o berço das literaturas.

Produzindo esforçadamente, numa terra em que vale sacrifício o trabalho da inteligência apurada, Fontes Ibiapina enriqueceu, dia por dia, o patrimônio intelectual do Piauí. Os seus livros de contos, os seus romances fixam tipos, costumes, linguajar deste pedaço regional brasileiro. Vai às fontes das manifestações da alma popular, recolhe a sabedoria das comunidades, a sua expressão espiritual, os seus sentimentos, e faz o livro de fixação, como se estivesse em pintar quadro dos mais sérios e dos mais graves e vivos. O homem de letras comunica-se por dois modos fundamentais: ou concebe a mensagem, reformando o pensamento existente, derribando preconceitos, sacudindo estruturas, ou faz da paisagem social cópia integral, a própria mensagem artística. Assim Fontes Ibiapina: a sua mensagem se encontra na podrosa inteligência de observação para fixar o meio e o homem que nele habita.

O livro de Ibiapina "Congresso de Duendes" reúne estórias de gente e principalmente estórias de bichos. De bichos, ou composição de fabulário, de que se extrai a indicação moralizada, ou o substrato do conto, que se cifra no vestígio sobre a figura humana do acontecido com a alimária em que ela se metamorfoseou. Há, na concepção de Ibiapina, verdadeiro conjunto de manifestações populares incorporadas, representativos das crendices mais fortes da coletividade piauiense.

Um grande folclorista adotou a tese de os contos populares têm asas: eles voam através dos continentes, das raças e dos séculos. O folclore é um só.

O folclore poderia dizer-se a história moral do homem, como insinua Câmara Cascudo. Melhor é identificá-lo como a história natural das coletividades, da sua alimentação, dos seus tabus, das suas orações, dos seus ritos, da sua vida diária, para o reconhecimento da cultura como conjunto de normas sociais de que participamos.

Daí porque o trabalho do escritor, quando procura a fonte folclórica como sustento do livro, há de compreender as manifestações populares no campo em que elas se manifestam, para anotar-lhe as variantes e oferecer a fisionomia da realidade cultural. Não se pode reproduzir o folclore na sua universalidade, apenas. É necessário entendê-lo como a ciência do homem comum, a preocupação de Ibiapina, para projetá-lo no quadro da vida urbana e da vida rural, - como contadores de estórias de bichos, reproduzidas de gerações em gerações, como personagens de novelas de amor, de heroísmo, como personagem de facécias, de cenas de bravura para lavação da honra ofendida, sempre respeitoso com a mulher, - objeto das preocupações do macho numa terra de preconceitos, e mais: como personagem da violência de um mundo que o prepara para o ódio e para a vingança - o ódio e a vingança - o ódio e a vingança sugeridos e provocados pelo desequilíbrio dos processos da vida social.

Ibiapina utilizou-se dos bichos para ironizar os poderosos de desvirtudes políticas, e serve-se dos homens sem destino para que estes interpretem o drama das suas comunidades, nas quais os instintos não vivem, nem é possível que sobrevivam as outras estruturas da sociedade.

A Tito Filho, 01 de dezembro de 1990, JORNAL O DIA