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sexta-feira, 14 de maio de 2010

AINDA FOLCLORE

Fontes Ibiapina se realizou no difícil trabalho da obra de ficção, embora eu descreia da obra de ficção e acredite em que os escritores, nos contos e nos romances, reproduzam fatos e episódios da vida, inclusive aqueles de que foram intérpretes. E quando o escritor não copia a vida real, produz a obra literária com adaptação de lendas e tradições populares. O "Fausto", de Goethe, promanou de um conto popular. O "Dom Juan" tem origem folclórica. Rabelais inspirou-se na lenda de gigantes gauleses para a criação de "Gargantua". Gustavo Barroso observa muito bem que os temas dos povos são, em grande parte, o berço das literaturas.

Produzindo esforçadamente, numa terra em que vale sacrifício o trabalho da inteligência apurada, Fontes Ibiapina enriqueceu, dia por dia, o patrimônio intelectual do Piauí. Os seus livros de contos, os seus romances fixam tipos, costumes, linguajar deste pedaço regional brasileiro. Vai às fontes das manifestações da alma popular, recolhe a sabedoria das comunidades, a sua expressão espiritual, os seus sentimentos, e faz o livro de fixação, como se estivesse em pintar quadro dos mais sérios e dos mais graves e vivos. O homem de letras comunica-se por dois modos fundamentais: ou concebe a mensagem, reformando o pensamento existente, derribando preconceitos, sacudindo estruturas, ou faz da paisagem social cópia integral, a própria mensagem artística. Assim Fontes Ibiapina: a sua mensagem se encontra na podrosa inteligência de observação para fixar o meio e o homem que nele habita.

O livro de Ibiapina "Congresso de Duendes" reúne estórias de gente e principalmente estórias de bichos. De bichos, ou composição de fabulário, de que se extrai a indicação moralizada, ou o substrato do conto, que se cifra no vestígio sobre a figura humana do acontecido com a alimária em que ela se metamorfoseou. Há, na concepção de Ibiapina, verdadeiro conjunto de manifestações populares incorporadas, representativos das crendices mais fortes da coletividade piauiense.

Um grande folclorista adotou a tese de os contos populares têm asas: eles voam através dos continentes, das raças e dos séculos. O folclore é um só.

O folclore poderia dizer-se a história moral do homem, como insinua Câmara Cascudo. Melhor é identificá-lo como a história natural das coletividades, da sua alimentação, dos seus tabus, das suas orações, dos seus ritos, da sua vida diária, para o reconhecimento da cultura como conjunto de normas sociais de que participamos.

Daí porque o trabalho do escritor, quando procura a fonte folclórica como sustento do livro, há de compreender as manifestações populares no campo em que elas se manifestam, para anotar-lhe as variantes e oferecer a fisionomia da realidade cultural. Não se pode reproduzir o folclore na sua universalidade, apenas. É necessário entendê-lo como a ciência do homem comum, a preocupação de Ibiapina, para projetá-lo no quadro da vida urbana e da vida rural, - como contadores de estórias de bichos, reproduzidas de gerações em gerações, como personagens de novelas de amor, de heroísmo, como personagem de facécias, de cenas de bravura para lavação da honra ofendida, sempre respeitoso com a mulher, - objeto das preocupações do macho numa terra de preconceitos, e mais: como personagem da violência de um mundo que o prepara para o ódio e para a vingança - o ódio e a vingança - o ódio e a vingança sugeridos e provocados pelo desequilíbrio dos processos da vida social.

Ibiapina utilizou-se dos bichos para ironizar os poderosos de desvirtudes políticas, e serve-se dos homens sem destino para que estes interpretem o drama das suas comunidades, nas quais os instintos não vivem, nem é possível que sobrevivam as outras estruturas da sociedade.

A Tito Filho, 01 de dezembro de 1990, JORNAL O DIA 

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