Clóvis Bevilaqua nasceu no Ceará. Esteve em Teresina como secretário do Governo do Piauí no começo da República. Casou-se com Amélia, filha de José Manuel de Freitas, pai e filha nascidos em Jerumenha, cidade piauiense. Clóvis adquiriu fama internacional de jurista, e ele muita a mereceu. Conheci-o no Rio de Janeiro em 1942. Tempos de bonde, o bonde de viagem monótona mas gostosa, e da pensão onde tinha minha residência à casa do jurista havia longo percurso de trilhos. Amélia escrevia bem. Fazia romance, crônicas e jornalismo.
O casal famoso, Clóvis e Amélia, gostava de receber amigo aos domingos, para o jantar. Uma vez Bugyja Britto, que parecia convidado permanente, convidou-me a fazer-lhe companhia e fui, assim, conhecer o grande jurisconsulto e esposa. Na visita obtive apetitosa refeição, em momento justo, pois hospedaria de estudante, dia de domingo, só dava almoço tipo ajantarado. Das seis da tarde por diante a quebradeira só permitia forrar o bucho com magra xícara de café com leite e um pãozinho lambusado de raríssima manteiga. A mesa de Clóvis tinha fartura e a bóia sabia bem. Enchi a pança, embora meu desejo principal fosse conhecer o mito Clóvis. Havia ele entrado na casa dos oitenta. Sempre numa cadeira de balanço, vestido de fraque. Não exonerava do traje a gravata. De encantadora simplicidade. Conversei com ele alguns instantes, acanhado, a modo de matuto que eu era. Lembrou-se o mestre de me dizer que dedicava muita simpatia ao Piauí, terra de sua mulher. Contou-me que trabalhou em Teresina, ao lado do primeiro governador republicano Taumaturgo de Azevedo.
Amélia, surda como diabo, conversava com um e com outro, em português, francês, inglês, de acordo com as exigências do visitante. A casa semelhava museu, bazar e jardim zoológico, ao mesmo tempo. Retrato de pessoas feias e bonitas pelas paredes, peças e mais peças de esculturas reboladas pelos cantos, bustos, jarros, baús, tapetes, santos. Bichos vivos, Gatos, cães, curicas, papagaios, chicos-pretos, corrupiões. Algazarra muita, inclusive dos interlocutores de Amélia gritando para que ela pudesse ouvir.
Clóvis morreu em 1944, manhazinha. Amélia fez a viagem derradeira depois. Outras vezes engoli a boa e apetitosa chepa do casal. E nunca esqueci a hospitalidade dos dois bons velhinhos, o jurista e a romancista - e agora, neste 1987, revejo Amélia ao procurar dados seguros para preparar-lhe a biografia.
A. Tito Filho, 01/12/1987, Jornal O Dia.
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