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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

DISCURSO DE ODILON NUNES

Discurso pronunciado pelo Prof. Odilon Nunes, no auditório da Universidade Federal do Piauí, dia 12 último, quando lhe foi outorga do título de Doutor Honoris Causa.

Aqui estou para receber o título de doutor honoris causa que me foi conferido pela Universidade Federal do Piauí.

A distinção teve sua origem em minha ação como pesquisador de nosso passado histórico. Através de longos anos dediquei-me a esse afanoso mister, na presunção de que minhas pesquisas seriam úteis a meus contemporâneos. Foi, pois, um sentimento utilitário, de interesse puramente geral, que me conduziu a tão exaustivo empreendimento. Pus, então, a serviço desse objetivo, o que de positivo eu tinha: capacidade de renuncia e obstinação. Daí, nasceram as Pesquisas para a história do Piauí.

Como trabalho pioneiro nesse gênero, já são subsídios para os que quiserem estudar nossa história. Aí encontraram um roteiro de fontes documentais e essenciais, onde poderão aprofundar conhecimentos referentes a nossos antepassados.

E já nos remates últimos de tão exaustivo trabalho, e quando já vacilando na incerteza de que pudesse levar avante tão aspirada obra, eis que os professores do Departamento de Geografia e História da Universidade Federal do Piauí vêm dar-me alento, tomando a iniciativa de propor que me fosse concedida tamanha distinção de magnitude por mim jamais ambicionada, mas que constituirá o maior estímulo para alcançar o fim da caminhada.

Recebi esse gesto como ato de afeto, e também de solidariedade a minha humilde ação que nasceu do desejo de ser útil. Assim também foi valorizada a pesquisa, instrumento básico do ensino, em nossos dias.

Assim recebi e assim interpretei o vosso gesto que muito me sensibiliza. Eu vos confesso que foi pesquisando que, pela primeira vez, pensei numa universidade do Piauí, quando ainda este centro de alta cultura era apenas aspiração do piauiense, simples esperança de nossa comunidade. Quero ainda testemunhar que pensei, então, nesta Universidade com o mesmo afeto e respeito com que vos falo.


Permiti que num ligeiro bosquejo duma página dramática de nossa história, elucide o que vos digo.

Estudando a terra piauiense, não apenas aprendemos a amá-la, mas, sobretudo a admirá-la nas tradições de sua gente, saturadas de sofrimento, mas também de idealismo.

Quando nos familiarizamos com o período da conquista da bacia oriental do Parnaíba, ficamos surpreendidos em face da obstinação com que os primeiros vaqueiros, sem amparo dos poderes públicos, entre perigos iminentes e imprevisíveis, com firmeza e sem estardalhaços, destemerosamente iam ficando as caiçaras de seus currais, consolidando as bases duma civilização. Nunca, em tempo algum, e em nenhuma parte, em tão pouco tempo, tão pouca gente conquistou tão grande extensão de terras. E foi conquista definitiva, para sempre. Realizações dessa natureza não são proezas para homens vulgares.

Aqueles solitários vaqueiros, metidos em seus gibões de couro, frugais em sua alimentação, pródigos em renúncias, assentaram, de modo positivo, as bases de nossa economia e de nosso povoamento. Mas não foi somente isso, porque fixando a base de nossa população e de nossa produção, determinaram também a natureza de nosso trabalho, e assim influenciaram na formação da psicologia do piauiense, dotando-o de capacidade para a luta na obtenção de seus propósitos, e sempre estimulado pelo apego à terra sofrida. Quando o Piauí aparece, já era uma colméia de homens audaciosos que firmavam silenciosamente os vínculos mais profundos da grande nação brasileira.

Aquele comando de vaqueiros, em que predominavam mamelucos, era liderado por Domingos Afonso Sertão, mais conhecido por Mafrense, chefe de tribos em luta contra tribos indígenas, na disputa da terra, na milenar luta do homem contra o homem, em busca de mais espaços vitais.

Além de caudilho, Mafrense quis, entretanto, realizar obras que perdurassem através dos tempos. E para isso encontrara parceiros indômitos. Não ficava vale de afluente e subafluente da bacia oriental do Parnaíba que não pisassem aqueles temerários vaqueiros, plantando as sementeiras dos currais que se tornariam perene fonte da nossa riqueza.

Como chefe de tribos, fora déspota. Não obedecera a tradições; não respeitam direitos. No devassamento da terra, massacrara os indígenas, por vezes destruíra capelas, expulsando os padres, retardatários conquistadores que não recebiam como seus aliados.

De déspota passaria a patriarca. Handelmann chama-o de príncipe de pastores, e diz que patriarcalmente distribuía justiça. Já alcançara seus objetivos. Já era senhor das mais opulentas fazendas da bacia do Canindé.

Senhor de grandes cabedais, obedecendo a seus impulsos de criador de obras duradouras, resolveu Mafrense, já no declínio da vida, destinar seus bens do Piauí à fundação dum morgado ou capela, que teria como administrador o Reitor do Colégio da Bahia, o que fosse no momento e os que lhe sucedessem, até o fim do mundo, dissera ele em seu testamento.

E as fazendas de Mafrense localizadas nas ricas terras da bacia do Canindé, após sua morte, em obediência a sua vontade, tornaram-se fonte financeira para manutenção do Noviciado de Giquitaia e do Colégio da Bahia.

Os jesuítas que professavam nesse colégio, também conhecido por Colégio do Terreiro, vinham solicitando permissão de Roma ou de Lisboa, para criação duma universidade em S. Salvador.

Estudando as raízes da Universidade da Bahia, comenta o historiador Alberto Silva, um de seus mais ilustres professores: "Não lograram por certo o que tanto desejaram e requereram, mas a verdade é que o seu Colégio do Terreiro foi bem uma universidade dotada de características básicas: âmbito universitário, estudos de humanidades, particularmente de Letras Clássicas, de Filosofia, de Ciências Naturais, de Matemática, de História, de Geografia, cerimônias escolares faustosas, graduações acadêmicas expressivas, anel simbólico, livro de juramento, capelo azul e quatro faculdades superiores. Mais: coube ainda ao Colégio do Terreiro a glória de iniciar no Brasil a conferição de graus acadêmicos".

Como vêdes, as fazendas de Mafrense, sob a administração dos jesuítas, financiaram as duas fundações culturais mais importantes do Brasil de então, das quais, uma era verdadeira universidade. E isso através de quase meio século.

E quando surge um novo condutor de homens, mas animado de ambição e vaidade, num ato desvairado expulsa de Portugal e de seus domínios os jesuítas, confisca-lhes os bens, fecham-se os estabelecimentos de cultura.

Os padres jesuítas que então trabalhavam na Bahia, foram todos presos, para deportação. No dia do embarque, conta-nos Serafim Leite, na capela do Noviciado de Giquitaia, todos juntos entoaram o cântico ambrosiano de graças e louvores por serem julgados dignos de padecer em nome da obra missionária a que se dedicavam.

E Serafim Leite, que tudo isso documenta através de ampla pesquisa, ao referir-se ao confisco, comenta: "Os homens não respeitaram a última vontade do grande benemérito sertanista. Mas até ao fim do mundo, ou pelo menos enquanto soar o nome do Piauí, soará o nome de Domingos Afonso Mafrense Sertão".

Após o fechamento do Colégio da Bahia, só decorridos quase dois séculos, o Brasil viria a ter sua primeira universidade. E o rico patrimônio destinado pelo doador à cultura e ao desenvolvimento do Brasil, com a expulsão dos jesuítas, e o desvio de sua finalidade, teve triste história, e entrou em decadência. Hoje pertence ao Estado do Piauí: são as Fazendas Estaduais.

Essas páginas dramáticas de nossa história, como há pouco vos disse, fizeram-me pensar (e isso já faz muitos anos), numa futura universidade do Piauí. Em 1958 publiquei um trabalho em que sugeri pela primeira vez, que os remanescentes do morgado que dera origem ao Noviciado de Giquitaia e financiara o Colégio da Bahia, fossem convertidos em patrimônio da futura universidade do Piauí.

Não havia originalidade na ideia. Basta conhecer a história da Escola de Engenharia do Rio Grande do Sul. Seu maior patrimônio teve como base propriedades territoriais, e sua origem, em doação de generosa fazendeira, a baronesa de Candiota. Já são decorridos quase oitenta anos de sua fundação, o graças a uma plêiade de homens missionários, pelo exemplo de serviços prestados à cultura e ao progresso, constitui hoje, afora muitas outras instituições, a Escola de Engenharia da UFRGS, entre as congêneres no Brasil, a que possui maior numero de cursos profissionais. Bem poderia ser inspiração para os que lideram a vida piauiense.

Exemplo maior dão-nos, entretanto, os Estados Unidos. Sabemos que Jéferson, dotado da perspicácia do autentico estadista, defendera, em sua longa vida, a doação de terras às escolas americanas. Duma vez dissera ele, já no crepúsculo da vida, a testemunhar o que vos digo: "Esta é, de fato, e em substancia o plano que propus num projeto de lei, há quarenta anos atrás...".

Os estadistas americanos, desde os primeiros dias de após a Independência, passaram a conceder terras às escolas que se fundavam. A primeira doação foi logo após a ação de Jéferson, quando os Estados Unidos já tinham nove universidades, cujos professores, no dizer dum historiador, tornaram-se mais admiráveis pela devoção que pela competência; Promulgaram-se novas leis, pelo menos até 1862, a de doação de Lincoln, especialmente, a escola de engenharia, de agronomia ou industriais, independentes ou ligadas a universidades, e destinadas a estimular as pesquisas na agricultura, que se tornou assim experimental ou cientifica. Saídos dessas escolas, em 1930, 8000 cientistas trabalhavam nos centros experimentais, nas fazendas demonstrativas, ligados às universidades, executando variedades de projetos de pesquisas e contribuições outras de positiva significação para a expansão dos Estados Unidos.

É assim que, em nossos dias, muitas dessas universidades têm como seus mais ricos patrimônios as terras que lhes foram doadas.

A universidade, se é ainda um centro de altos estudos para o enriquecimento cultural, já propende, entretanto, mais para a pesquisa, para os laboratórios, para a prática experimental. Hoje, a função da universidade é servir coletividade. É a [?]* identifica com o povo, vincula-se à terra. Já não é fator do divorcio entre a elite e o povo, o que ainda vem ocorrendo no Terceiro Mundo, dando origem ao desassossego social que ora nos tortura.

Agora mesmo testemunhamos a Universidade de Alagoas assinar convenio com a Sudene, para efetuar pesquisas da pesca nas lagoas, nos açudes, nos estuários dos rios alagoanos. E que é enfim Projeto Rondon? Encontramos a resposta no depoimento de Robert Kennedy, sobre a América Latina: É o que fazem também universitários peruanos que trabalham nas favelas de Lima e nas aldeias dos Andes; universitários chilenos que se tornaram coluna-mestra nos programas tipo Corpo da Paz; universitários colombianos a trabalhar em programa de ação comunitária nos bairros de Caracas. Tudo isso nos conta Robert Kennedy, quando diz que essa foi a "primeira geração de estudantes latino-americanos a sujar as mãos e a curvar suas espinhas".

Esse movimento de renovação universitária teve sua origem nos Estados Unidos. Foi Jean Jacques Servan-Schereiber quem melhor sentiu essa projeção da universidade americana, em sua maior grandeza, e externou seu pensamento em O Desafia Americano, obra em que diz, já não há separação entre vendedores e intelectuais, isto é, entre o trabalhador e o intelectual, entre o operário e o homem de cultura.

Ele nos faz crer que a expansão americana teve sua origem não apenas no progresso tecnológico e nas riquezas do subsolo, mas, sobretudo, teve sua origem na ação conjunta e harmônica entre as unidades industriais, a universidade e o poder político.

Denuncia o estado de esclerose e de inferioridade em que se encontram as universidades européias, especialmente as de origem latina, e mostra a necessidade de reformá-las, para a sobrevivência da Europa.

Sua obra teve extraordinária repercussão não apenas na Europa, mas também nas Américas de cultura latina. No Brasil intenta-se democratizar o ensino universitário, e levar à universidade a pesquisa, instrumento também indispensável ao diagnostico para conhecer as condições demográficas e econômicas da Nação, e promover um programa desenvolvimentista com o objetivo de anular os desequilíbrios regionais e de classes sociais, tão nocivos à harmonia nacional.

Foi, pois, inspirado já não apenas na Escola de Engenharia de Porto Alegre, verdadeira universidade técnica do Rio Grande do Sul, como também no exemplo dos Estados Unidos, que mais tarde, já em 1970, voltei a tratar do assunto, em pequeno estudo sobre Mafrense, e reiterei a sugestão de que fossem convertidos os remanescentes de sua capela em patrimônio universitário.

As condições do Piauí são bem semelhantes às do Rio Grande do Sul. O Piauí precisa também de sua universidade técnica, de ensino "ecologicamente condicionado", e nos moldes da fundação gaúcha, ou como mais conveniente for, com fazendas demonstrativas e centros experimentais, ligados à universidade como nos Estados Unidos, para que tenhamos também desde o engenheiro ao capataz habilitado, técnicos em geral, e ainda instrumentos e campo para pesquisas aplicadas ao nosso meio geográfico, especialmente à nossa flora, à nossa fauna, com finalidade de adaptar nossa agricultura e nossa pecuária ao meio agreste em que tão precariamente se desenvolvem, sem assistência cientifica, seguindo os mesmos processos do primeiro século. É bem verdade que nos esquecemos do que dizia o velho Visconde da Parnaíba: "os currais são os mananciais de nossa riqueza".

Eu peço perdão se feri alguma cousa do protocolar, se exorbitei do que houvera de dizer nesse momento para mim tão solene.

Aqui estou por iniciativa dum grupo de professores, classe a que me envaideço de pertencer. Não tenho palavras para agradecer. Assim também ao Conselho Diretor da Fundação UFPI e ao boníssimo Padre Chaves. Dirijo-me e agradeço a toda esta comunidade universitária (a que já tenho a honra de pertencer, pela vossa graça), e donde sairão os lideres de amanhã, que são as esperanças de hoje. Agradeço a todos que aqui estão.

A todos quero lembrar, mais uma vez que Mafrense, quando em seu testamento doou seus bens do Piauí e fundações culturais, tornou bem claro que seria até o fim do mundo.

Pombal, o usurpador desses bens, foi quem primeiro procurou vendê-los. E desde então se vem intentando transferir essas terras a particulares.

Ainda é tempo de tornar válida a vontade de Mafrense; seria a remissão de dois séculos de crimes e pecados.

Vender as terras que foram conquistadas, povoadas e enriquecidas pelo grande sertanista, que as destinou à finalidade tão meritória, seria revelação de inabilidade, revelação de que já não temos os atributos dos antepassados do primeiro século que, liderados pelo benemérito colonizador, nos legaram as páginas mais belas do período heróico de nossa história. Temos milhares de camponeses sem terra, e muitos residem nas Fazendas Estaduais. Executa-se no momento uma reforma agrária. Que se prossiga na obra de Mafrense. Que se faça também nessas terras a fundação de núcleos coloniais, servidos de cooperativas agrícolas, devidamente aparelhadas, e unidos a escolas universitárias como nos países que já deram prioridade à técnica. Assim teremos a integração econômica do camponês, ampliando o mercado brasileiro, e enriquecendo o nosso erário.

Que essa geração aceite o desafio e demonstre as grandes capacidades dos primitivos colonizadores, dos quais somos legítimos descendentes.

Obrigado, muito obrigado.

Publicado no Jornal do Piauí, em 14 de julho de 1974.

* O trecho está ilegível no original.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

MESTRE ODILON NUNES III

Lembre-se que no começo do século XIX o ouro, o diamante e o açúcar estavam em decadência. O Norte representava dois terços da atividade útil do Brasil. Se Fidié se mantivesse no Piauí, como queria D. João VI, Portugal dominaria o Norte e evitaria a vitória dos baianos, cortando-lhes o fornecimento de carne. Maranhão, Piauí e Pará formariam o Brasil Português, subordinado a Lisboa.

No 3º volume, Odilon estuda de modo profundo as causas da Balaiada e sobre o assunto apresenta impressionante documentação. Para ele, essa guerra violenta no Maranhão e Piauí resultou de um choque de culturas. As origens próximas da luta estavam na pratica perniciosa do recrutamento promovido pelo Exército, fazendo que pobres caboclos entrassem para o serviço das armas, longe da terra e da família. As causas sérias eram outras: as condições de ordem econômica geradoras de permanente miséria coletiva; a terra confiada a poucos; àqueles que representavam o regime político e que viviam de explorar o homem do interior; a fome e a estrutura social, o brasileiro esquecido e abandonado.

Finalmente, no 4º volume, Odilon Nunes realiza estudos sociais e políticos da maior relevância: as lutas partidárias, o processo educacional, o regime de trabalho, o crime e suas causas, a mudança da capital de Oeiras para Teresina, a guerra do Paraguai, a liberdade dos escravos, a colonização e aspectos culturais do Piauí. Pena que o ilustrado e honesto historiador esbarre na República.

Deduz-se que, no fim do século XIX, o Piauí parecia esmorecer: economia de subsistência, fontes de riquezas estagnadas, comércio e lavoura em grandes dificuldades, decadência da pecuária, tristes condições educacionais e culturais.

Pesquisa de probidade inatacável, são seguras as observações que Odilon Nunes reuniu nos 4 volumes sobre homens e episódios da história piauiense, com a ingente preocupação de elucidá-la e interpretá-la. Tem sido mestre incansável na busca de documentos de rara importância para a feitura da tarefa que se impôs. Bem disse dele José Honório Rodrigues: "Odilon Nunes é um pesquisador notável, fiel à verdade histórica, buscada nas fontes primárias, e um historiador que, pela obra paciente de relembrar o passado de um povo tão agravado, tão empobrecido, mas tão leal ao Brasil, em tantas conjunturas extremas, se coloca na vanguarda da historiografia estadual".

Faleceu Odilon Nunes, depois de legar ao Piauí uma obra brilhante e necessária. Pertencia a Academia Piauiense de Letras.


A. Tito Filho, 26/08/1989, Jornal O Dia. 

MESTRE ODILON NUNES II

Sertão desconhecido, ignoto, temeroso. Dizem até que a famosa Casa da Torre, no litoral da Bahia, tinha duas faces, uma para o mar, vigiando piratas e inimigos, outra para as terras de perigos sempre fartas.

Até a Independência, a história do Piauí se resume quase na história da pecuária. Bois, vacas, garrotes e bezerros apinhavam os lugares. Cada vez mais cresciam os rebanhos sem mercados. O vacum representava a moeda, o dinheiro. Inexistia patrão. O vaqueiro não era empregado, mas sócio nas reses, e escreveu páginas inesquecíveis na vida piauiense.

Nesses longínquos fins dos anos setecentos, o Piauí enfrentava problemas angustiantes de tardio povoamento, dificuldades de transportes, sem agricultura e sem escolas.

Não se esqueça a perversa matança da indiada aos magotes. João do Rego Castelo Branco liquidava todo tipo de índio: feto, recém-nascido, crianças, adolescentes, moço, maduro e velho. As estrepolias sangrentas desse exímio degolador ingressaram na história. Cumpria ordens dos conquistadores da terra e dos governantes. E cumpria-as sem um pitoco de remorso, alegre sempre.

Em Odilon admira a paciência na busca do documento, o documento que ele confere, examina, estuda e dele retira a verdade, para a narrativa segura e a análise esclarecedora.

O mestre dedica o 2º volume das suas investigações à independência.

A vila de Parnaíba deu o grito primeiro no Piauí, a 19/10/1822. A noticia chegou a Oeiras, sede do governo português na capitania, e logo o comandante das armas de Portugal, Fidié, seguiu com infantaria e artilharia do cabo-de-guerra luso, Manuel de Sousa Martins, dia 24 de janeiro de 1823, manhãzinha, proclamou a independência na capital e estabeleceu governo com a distinção das autoridades portuguesas.

Em Parnaíba, onde se aquartelou, Fidié teve tempo para disciplinar as tropas e receber material bélico do Maranhão. Fazia-se necessário retornar a Oeiras e retomar o governo. O comandante português marchou para alcançar Campo Maior - e aí, às margens do Jenipapo, vaqueiros e roceiros o aguardavam. Houve os primeiros choques. Ceifadas muitas vidas. Os nossos homens buscavam a morte. Portugal sofreu pesadas perdas. Retirou-se, em rumo do Maranhão. A luta no Piauí decidiria a unidade brasileira, pois Portugal queria dois Brasis: o do Norte, rico em gado, para ele; e o do Sul, pobre, de que os portugueses não faziam conta.


A. Tito Filho, 25/08/1989, Jornal O Dia. 

domingo, 15 de agosto de 2010

MESTRE ODILON NUNES I

As Pesquisas para a História do Piauí, de Odilon Nunes, em 4 volumes, revelam a saga piauiense, dos primeiros tempos até o fim do período provincial, uma saga com gosto e sabor de tragédia.

Do volume inicial constam a pré-história, os primeiros contatos com a terra, os primórdios da colonização e dos currais, a ausência de disciplina legitima e os governos que deram começo à vida politica.

A narrativa abrange os índios, a matança destes, a sangueira, o genocídio, as lutas sem fim, as sesmarias, o Parnaíba, riozão famoso, o território imenso de população e população escassa. Uma vez escrevi que a história do Piauí, no principio, está no pânico e no vácuo. Dias perigosos: o pânico. A volúpia mortífera das desgraças do meio: o vácuo. Odilon mostra e interpreta isso tudo. Neste ponto o seu extraordinário valor: a análise dos episódios, causas e consequências.

Domingos Afonso Mafrense e o xará Domingos Jorge Velho - sertanista e bandeirante - penetraram o Piauí com os seus troços de gente, e colonizaram terras, senhores de sesmas e de latifúndios, do gado bovino trazido e outras paragens. Sobre o primeiro não há duvida. Com o outro, o paulista, baita de homem severo e truculento, indicam alguns historiadores e dizem que não passa de lorota a sua vinda ao Piauí, donde teria saído para a matança dos Palmares, nas Alagoas. Odilon estudou detidamente o fato em mais de um trabalho, anotando referencias a bandeiras paulistas que agiam nos sertões do São Francisco, de 1671 a 1674: "Podemos assim presumir que Domingos Jorge Velho pertenceu a algumas dessas bandeiras a que nos referimos, se não fora mesmo o chefe de uma das partidas de paulistas que vinham operando nos sertões do São Francisco". Num livrinho rico de observações, o mestre sustenta, categórico, a respeito do paulista espadaúdo: "São múltiplas as provas da sua atividade no vale do Parnaíba".

Fim do século XVII. Admirável a ação dos catequistas. O Piauí torna-se cenário histórico empolgante. Já o bandeirante transmuda-se em curraleiro, encourado, nômade, solitário, individualista - são ensinamentos de Odilon. A riqueza era o gado e da rês se aproveitava tudo, a carne, os ossos, o tutano, bofes, cacos, couros, chifres, fezes, até o membro genital enorme. Em tudo o bovino: na panela, no cornimboque, nas liteiras, no gibão, nos arreios, em certos vasilhames de viagem, nas portas, nos calçados. Muitos falaram dessa civilização do couro.


A. Tito Filho, 24/08/1989, Jornal O Dia.

domingo, 23 de maio de 2010

AINDA ODILON

Nos longínquos fins dos anos setecentos o Piauí enfrentava problemas angustiantes de tardio povoamento, dificuldades de transporte - sem agricultura e sem escolas. Não se esqueça a perversa matança da indiada, aos magotes. João do Rego Castelo Branco liquidava todo tipo de índio: feto, recém-nascido, criança, adolescente, moços, maduros e velhos. As estrepolias sangrentas desse exímio degolador ingressaram na história e na literatura. Cumpria ordens dos conquistadores da terra e dos governantes. E cumpria-as sem um pitoco de remorso, alegre sempre. Em Odilon Nunes se admira a paciência na busca do documento - documento que ele confere, examina, estuda e dele retira a verdade, para a narrativa segura e a análise esclarecedora. Narra o mestre os episódios da independência: Parnaíba, Oeiras e Jenipapo. E lembra que no começo do século XIX o ouro, o diamante e o açúcar estavam em decadência. O Norte representava dois terços da atividade útil do Brasil. Se Fidié se mantivesse no Piauí, como queria D. João VI, Portugal dominaria o Norte e evitaria a vitória dos baianos, cortando-lhes o fornecimento de carne. Maranhão, Piauí e Pará formariam o Brasil Português, subordinado a Lisboa. Adiante Odilon estuda as causas da Balaiada. Para ele, essa guerra violenta no Maranhão e Piauí resultou de um choque de culturas. As origens próximas da luta estavam na prática perniciosa do recrutamento feito pelo Exército, fazendo que pobres cablocos entrassem para o serviço das armas, longe da terra e da família. As causas sérias eram outras: as condições de ordem econômica geradoras de permanente miséria coletiva; a terra, confiada a poucos, àqueles que representavam o regime político e que viviam de explorar o homem do interior; a fome e a estrutura social, o brasileiro esquecido e abandonado. Finalmente realizados estudos sociais e políticos da maior relevância: as lutas partidárias, o processo educacional, o regime de trabalho, o crime e as suas causas, a mudança de capital de Oeiras para Teresina, a guerra do Paraguai, a liberdade dos escravos, a colonização e aspectos culturais do Piauí. Pena que o ilustrado e honesto historiador esbarre na República. De tudo se deduz que no fim do século XIX o Piauí parecia esmorecer: economia de subsistência, fontes de riqueza estagnadas, comércio e lavoura em grandes dificuldades, decadências da pecuária, tristes condições educacionais e culturais.

A. Tito Filho, 14/11/1987, Jornal O Dia. 

quinta-feira, 20 de maio de 2010

MESTRE ODILON

AS PESQUISAS PARA A HISTÓRIA DO PIAUÍ, de Odilon Nunes, em 4 volumes, revelam a saga piauiense, dos primeiros tempos até o fim do período provincial, uma saga com gosto e sabor de tragédia.

Do volume inicial constam a pré-história, os primeiros contatos com a terra, os primórdios da colonização e dos currais, a ausência de disciplina legítima e os governos que deram começo à vida política. A narrativa abrange os índios, a matança destes, a sangueira, o genocídio, as lutas sem fim, as sesmarias, o Parnaíba, riozão famoso, o território imenso de população escassa. Uma vez escrevi que a história do Piauí, no princípio, está no pânico e no vácuo. Dias perigosos: o pânico. A volúpia mortífera das desgraças do meio: o vácuo. Odilon mostra e interpreta isto tudo. Neste ponto o seu extraordinário valor: análise dos episódios, causas e consequências. Domingos Afonso Mafrense e o xará Domingos Jorge Velho - sertanista e bandeirante - penetraram o Piauí com seus troços de gente, e colonizaram terras, senhores de sesmos e de latifúndios, de gado bovino de outras paragens. Sobre o primeiro não há dúvida. Com o outro, o paulista, baita de homem severo e truculento, indicam alguns historiadores e dizem que não passa de lorota a sua vinda ao Piauí, donde saiu para a matança dos Palmares, nas Alagoas.

Odilon estudou detidamente o fato em mais de um trabalho, anotou referencias a bandeiras paulistas que agiam nos sertões do São Francisco. Fim do século XVII. Admirável a ação dos catequistas. O Piauí torna-se cenário histórico empolgante. Já o bandeirante transmuda-se em curraleiro, encourado, nômade, solitário, individualista - são ensinamentos de Odilon. A riqueza era o gado e da rês se aproveitava tudo, a carne, os ossos, o tutano, bofes, cascos, couro, chifres, fezes, até o membro genital enorme do bovino; na panela, no cornimboque, nas liteiras, no gibão, nos arreios, em certos vasilhames de viagem, nas portas, nas calçadas. Muitos falaram dessa civilização do couro.

Sertão desconhecido, ignoto, temeroso. Dizem até que a famosa Casa da Torre, no litoral da Bahia, tinha duas faces, uma para o mar, vigiando piratas e inimigos, outra para as terras de perigos sempre fartos.

Até a independência, a história do Piauí se resume quase na história da pecuária. Bois, vacas, garrotes e bezerros apinhavam os lugares. Cada vez mais cresciam os rebanhos sem mercados. O vacum representava a moeda, o dinheiro. Inexistia patrão. O vaqueiro não era empregado, mas sócio nas reses, e escreveu páginas inesquecíveis na vida piauiense.

A. Tito Filho, 13 de novembro de 1987, Jornal O Dia.