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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

JOGO, MUITO JOGO...

“A primeira vez que tomei parte numa banca de jogo, entrei com 35$000 e tive uma sorte inaudita. Dominei a fama dos veteranos de bacará, e, pela madrugada, quando em retirei, levava, no bolso, mais de 800$000, alem do que me ficaram devendo. É fácil imaginar meu deslumbramento deante de tamanha fortuna! Mas engano dalma ledo e cego. Daí por diante experimentei todas vicissitudes do azar caprichoso e traiçoeiro. Passei a servir de joguete nas mãos dos mais espertos.”

Higino Cunha – “Memórias”.

Acrescenta o mestre:

“Persisti durante cerca de três e fui obrigado a abandonar para sempre o jogo de cartas, malferido na bolsa e na reputação e convenci-me da minha incapacidade para tão arriscado mister”. E mais: O jogo “não cria amizades sinceras e duradouras, nem simpatia entre os homens. Mesmo ganhando-se dinheiro, perde-se a confiança no trabalho regular e o tempo que devera ser aplicado em outros misteres, perde-se o credito e a boa fama, e adquirem-se habitos maus, que envenenam a existencia de modo irreparável!”

Despe, leitor amigo, a roupagem vistosa com que te apresentas ante as frivolidades da sociedade e vem comigo, lado a lado, para uma peregrinação noturna nos antros da jogatina. São oito horas da noite, é cêdo, a cidade toda mergulhou na sonolencia, depois do trabalho exaustivo de seus habitantes. Arrulham ainda poucos casais nos bancos de praça, mocinhas acabam de cansar as batatas da perna volteando na pista da Pedro II. Daqui a pouco tudo dorme. Apenas funciona o jogo, a terrível chaga social – sorvedouro da honra de muitos, desgraça de tantos lares, causa de inumeras tragedias. Funciona o jogo, leitor amigo, no centro da antiga Chapada do Corisco – nos clubes, nos bares, em casas particulares, em toda a parte. Desaparecem, no torvelinho medonho da jogatina, o pão, a roupa, o livro, a educação de muitas crianças teresinenses. Esposas aflites rezam no recesso de residencias humildes, chupando muitas vezes a carie de um dente, ou, em cima de três pedras, preparam um ralo mingau de farinha com que entupir o bucho das crianças famintas, enquanto o marido, no covil da jogatina, descarta-se do dinheiro, do relogio e da aliança de casamento para para alimentar o terrível vicio – fumando e bebendo, dores nas costas, debrucado na mesa fatídica, ou avido, nervoso, espiando a roda de roleta, atento ao ruído da palheta, ou, ainda, ouvido apurado, marcando numeros, à espera de que lhe dêem, no víspora, a pedra boa ...

JOGO, MUITO JOGO

- Cinqüenta e cinco ... numero oito ... noventa ...
É a voz arrastada do chamador, anunciando as pedras do víspora, uma a uma, os viciados, palidos  e pigarrentos, marcam os cartões, entre baforada de um cigarro quando estes desgraça os restos de pulmões e o trago de aguardente que lhes corroe as tripas ...
Reino da batota e do deboche – a comunidade de caras mal dormidas se expande, depois do ultimo rateio, no linguajar de calão, parebenizando os felizardos da noite e consolando, com uma palmada nas costas, so companheiros de desgraça e desventura.
Um pouco mais adiante, leitor amigo, o croupier anuncia, com gosto infinito, o ultimo lance da roleta miserável:
- Deu 15, jacaré ... Cercado com dois mil reis.
O desgraçado, mãos nos bolsos, coçando os ultimos tostões do ordenado ou as ultimas economia do pé de meia, lembra-se do sonho de tres dias atras, soma, multiplica, subtrai, divide por dez – e verifica, após maldizer a sorte ingrata, que o bicho era mesmo o jacaré ...

A RONDA DOS AGIOTAS

Não se assuste leitor amigo. Estiremos as peruas um pouco mais, e observemos a praga do jogo. Da Praça Rio Branco à Piçarra, da Piçarra as imediações da Praça Landri Sales, desta a rua Álvaro Mendes, daqui à rua Areolino de Abreu. Das frestas das janelas e das portas, saem os minusculos focos das luzes denunciadoras. Em tudo domina o silencio, impera o sussurro. Poucas vezes reboa a gargalhada. Ouve-se bem o ruído de mãos tremulas traçando o baralho. Poker. Bacarat. Pifpaf.
O Parceiro “chora” as cartas, visando à sensação. “Entrou no meio”, “seus vinte e mais quarenta”, “abro com dez”, “colei uma sequenciazinha” – são as frases ensaiadas, ensarilhadas, engatilhadas ...
Em volta das mesas, as duas qualidades de assistente: o “peru”, que tudo perdeu, inclusive o caminho da honra, e o agiota, na ronda macabra, olhos fitos nas joias do parceiro infeliz, consciencia firme nos 40 % ou 50 % de lucros à custa da vida hipnotizada ...

UMA CARTA E UM APELO

Já vimos muito, leitor amigo, mas não vimos tudo, embora estas pequenas anotações sejam suficientes para uma carta e um apelo, redigidos uma e outro, nos seguintes termos:
“Meu caro delegado Neiva. Estivemos juntos, pela ultima vez, se me não falha a memória, em a noite de 6a. feira. Tornei, nessa ocasião, a falar-lhe do jogo – e mantivemos, sobre o assunto, cordial conversação. Perseguir os pobres e humildes jogadores de sete e meio e relancim, privar-lhes do vicio, processar os pequenos exploradores da desgraça alheia, enquanto os ricos e poderosos, os de gravata e sapatas engraxados, podem, livremente, praticar o poker, o pifpaf, o vispora – é cousa que se não coaduna com o seu feitio moral. A lei das Convenções Penais não faz exceção. Exceção não faz o decreto-lei 9.215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo General Eurico Dutra – disse-me você, lembrado talvez de que muitas mães de família lhe imploravam guerra total ao terrível vicio.
Esposas pobres e esposas ricas lhe imploram a esmola do combate ao jogo. Filhos doentes, desnutridos, atacados de lombrigas, olhos remelentos – necessitam dos cuidados que lhes proporcionam os dinheiros sumidos na voragem do jogo. Só voce, meu caro Neiva, com apoio sadio do eminente Governador Rocha Furtado e do ilustre Chefe de Policia, pode dirigir um ultimatum a todos os exploradores, declarar-lhes guerra, aferrolhar os antros, processar os criminosos. Nas suas mãos encontram-se as armas – todas legalissimas – com as quais poderá você aniquilar o mal medonho, que tudo arruina, que tudo avilta, que tudo desgraça.
E depois da limpeza, meu caro Neiva, poderá voce, com a consciencia tranqüila ler esse trecho sublime:
‘Esse mal – o jogo – que, muitas vezes, não se separa do lupanar senão pelo tabique divisório entre a sala e a alcova; essa fatalidade, que rouba ao estudo tantos talentos, á industria tantas forças, á probidade tantos caracteres, ao dever domestico tantas virtudes, á pátria tantos heroismos, reina sob a manifestação completa em esconderijo, onde a palavra se abastarda em calão, onde a personalidade humana se despe de seu pudor, onde a embriaguez da cubiça delira cinica e obscena, onde os maridos blasfemam pragas improferíveis contra a honra conjugal, onde, em uma comunhão odiosa se contraem amizades inverosimeis, onde o menos que se dissipa é o tempo, estofo precioso de todas as obras primas, de todas as utilidades solidas, de todas as ações grandes. Inumeravel é o numero de criaturas, que a tentação, o exemplo, o instinto, o habito, o acaso, a miseria humana, a passar por esses latibulos, cuja clientela vai periodicamente fazer-se apodrecer ali por gozo, por avidez e na corrução, em cujos misterios cada iniciado se afaz a ir deixando ficar, aos poucos, a energia, a fé, a nobreza, o juizo, a honra, a temperança, a caridade, a flor de todos os afetos, cujo perfume embalsa e preserva o caráter’.
Tambem exerci o cargo de Delegado de Transito e Costumes, do qual me exonerei por livre e espontanea vontade, meu caro Neiva. Conheço muito bem as lutas que você está tendo para desempenhar suas funções e corresponder á confiança da sociedade. No exercício das minhas funções tudo fiz para exterminar o jogo, graças a Deus.
Mas não fiz porque se exonerou da Chefia de Policia o Dr. Eurípedes de Aguiar, que sempre me deu inteiro apoio na luta terrível.
Sei que você atenderá, dentro das suas forças e da sua boa vontade, servido por um elevado espírito de honestidade, este apelo.

Um cordial abraço do A. TITO FILHO”.

A. Tito Filho, 11/04/1948, Jornal O Piauhy.

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