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segunda-feira, 14 de março de 2011

MEMÓRIA

Recebi do culto conterrâneo Anízio Cavalcanti o seguinte sobre o saudoso Alarico José da Cunha:

"A década dos anos 20 (1921-1930) foi a época em que o cronista saía da adolescência e se expendia no meio exterior à família. Foi o tempo em que entrou no âmbito ainda crepuscular dos primeiros contactos com os mais velhos. O sair do adolescente para um relacionamento mais dilatado fez que ele, com a memória fresca, retivesse, pela vida inteira, fatos, coisas e reminiscências que se abeirassem de sua vida familiar. E, dentro dessa perspectiva do seu viver, já matizado das primeiras aproximações com os demais seres humanos - ele fixou inconscientemente alguns deles, cuja efígie, nos gestos e atitudes, lhe ficou na memória como um retrato subjetivo.

Anos de 1926 a 1928... Fim das tardes calmas, ensolaradas. Pessoas já voltam do trabalho. Parnaíba, a terra de céus claros e vento brando que vem lá do mar... Dois intelectuais piauienses caminham pelo espaço amplo da Praça da Graça, caminho freqüente de quem vai para o trabalho. Encontram-se mais uma vez. Saúdam-se, no abraço fraterno do costume da terra. E, depois das primeiras palavras, um assunto vem à tona o destino da alma humana, o karma, cerne das crenças das vidas. Um, é Gonçalo Cavalcanti, o outro é Alarico Cunha. Naquela época, os círculos intelectuais de Parnaíba voltavam-se para obras de feição espiritualista, sobre religião, hinduismo, budismo, esoterismo.

Nos meus ouvidos de adolescente, ressoavam os nomes de Helena Blavatski, Jinarajadasa, Vivekananda, Annie Besant, Leadbeater, Olcott e outros vários, ingleses, estudiosos de religião da Índia. Na conversação, eu de quando em quando ouvia referencias aos vedas, ao Bhagavad - Gitá e aos Upinashiads... Meu pai Gonçalo e Alarico pareciam por vezes desprender-se do solo da praça e viajar até as longinquas montanhas dos Himalaias (o nome é plural) em busca dos caminhos - dos iogas - que levam o homem ao bem-estar (Hatha-Ioga), ao conhecimento (Gnani-Ioga), à mente iluminada (Raja) e ao cume supremo da ascensão mística, a Bhakti-Ioga. A noite vinha surpreendê-los na conversa embevecida. E era nessas ocasiões que meus olhos se fixaram em Alarico, homem estudioso, bondoso, cultíssimo, de elevada espiritualidade. Por influência da lembrança de seu vulto, minha pequena estante de livros abriga dois volumes de Yogi Ramacharaka, divulgador hindú da filosofia religiosa dos VEDAS e da VEDANTA. Vez por outra, para rever conceitos da filosofia oriental, meu braço se alonga e minha mão apanha o 'Curso Adiantando de Filosofia Yogi', desse autor; e, ao compulsar o livro, minha memória atravessa o tempo passado e eu vejo diante de mim dois piauienses intelectuais a conversar sobre um tema que lhes era tão grato: Gonçalo Cavalcanti, pai deste cronista, e Alarico José da Cunha, figura rara do homem culto.

Em verdade a conversação cultural daqueles dois intelectuais se vincula à sabedoria do Cristo, que, naqueles recuados tempos, às margens de Yám Kirenet, mar de Galiléia, encerrava o Sermão da Mantanha e recomendava: 'Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo' (MATEUS, 6,33).”

ANÍSIO DE A. CAVALCANTI, Niterói.


A. Tito Filho, 28/05/1988, Jornal O Dia

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