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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

CEIÇA

Estava eu como delegado de Polícia de Teresina, tempos passados, solteirão, quando, uma manhã recebi em audiência uma senhora viúva, quase preta, acompanhada da filha, caboclinha bem feita, convidativa. A mãe queixou-se do Bitonho, que havia deflorado a garota de dezesseis anos e não queria pagar o serviço, casando. Dois dias depois, o médico Hugo Bastos fazia o exame, presentes a autoridade policial, o escrivão e duas testemunhas. A garota ficou nuinha em pelo, deitou-se na cama especial. O doutor mais tarde escreveu o laudo de defloramento já cicatrizado. Conduzi a vítima a meu gabinete. Mandei-a sentar-se e guardar. Interroguei-a pelo meio-dia. Morava ela na estrada da Catarina. Tomei-me de intenções safadas. Liberei-a e disse-lhe que de noite iria à sua casa dar o resultado a mãe, e com esta conversei pelas vinte horas, no casebre miserável, isolado, dos arredores de Teresina. Notei que a mulher tinha interesse no delegado e, dentro em pouco, no único quartozinho ordinário da choupana, eu me deitava no jirau-cama com a graciosa Conceição, a ceiça. Bons e felizes momentos. Na despedida, a mãe me pediu que conseguisse casar a filha, pois, segundo lhe parecia, a menina engravidara. Meditei que o negócio o negócio poderia virar-se contra mim. Voltei umas três vezes ao local dos amores escondidos. E adotei providencias. Convoquei o Bitonho à delegacia, disse-lhe que a garota estava de criança na barriga e aconselhei-lhe o casamento. Melhor do que envolver-se em processo criminal, com o juiz Pedro Conde sempre a lamber os beiços para condenar sedutores. Bitonho aceitou a ponderação. Casamento no juiz Milcíades Lopes, de beca no corpo e código nos recitativos. O marido de Ceiça mostrou-se responsável. Tipo morenão, trabalhador, não arrepiava serviço. Tratava Ceiça de modo carinhoso. A sogra, mais algum tempo, morreu. Começou a chegar rebento no lar do casal. O primeiro, Pedro, me teve como padrinho. Batizado simples, na igreja de são Benedito. Os dias se escoavam e Ceiça paria ano por ano. Botou quinze entre meninos e meninas neste mundão. Bitonho suava em serviços diversos, mas sempre tinha bóia de todos e os panos das roupas de homens e mulheres.

Quando secretário da Educação empreguei minha comadre Ceiça. Dei-lhe cargo de merendeira e direito a assistência e previdência. Não me lembro a data em que Bitonho morreu num desastre em viagem para Caxias. Uma pena. Ceiça e os filhos enfrentaram a vida. Neste 1988, rapazes e moças do casal, todos casados, consideram-se felizes. Espalharam-se pelo Brasil e pelo interior do Piauí. Dedicam grande afeição à mãe e a ajudam dos longes das moradias. Mão heroína.

Os jornais desta capital publicaram páginas inteiras com as mães ricas retratadas bem vestidas, elegantes, do soçaite. Um retratinho sequer puseram das mães mortas. Também não vi heroínas como a comadre Ceiça, mãe pobre. Fui visitá-la no seu dia. Abracei-a. E ela me disse ao pé do ouvido:

- Comprade, continuo desconfiada. Meu primeiro moleque, o Pedrinho, tem mais pra branco do que pra negro. Aquele menino é seu, compadre...

De mim, tenho certeza de que foi o Bitonho o plantador da semente.


A. Tito Filho, 17/05/1988, Jornal O Dia

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