Quer ler este texto em PDF?

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

TOMBAÇÃO - I

Marcelino e Ada Rego, meus avós, tiveram mais de vinte filhos. Viviam no Peixe, hoje município de Nossa Senhora dos Remédios. No povoado morava, dona Beatriz Rodrigues, viúva sem descendentes, já idosa, e esta boa senhora quis criar um dos rebentos do casal, Nise, e recebeu a garota, cercou-a de conforto e de afeição. Moça feita, casou-se com José de Arimathéa Tito, juiz de direito da comarca de Barras com jurisdição em algumas vilas do interior. Nasci do casal. Minha mãe morreu do segundo parto, uma menina, que, quinze dias depois, fechava os olhinhos ao mundo. Meu pai casou de novo. Antes, deu-me de presente a dona Beatriz, a quem se chamava Beata. Uns três anos depois, resolveu ele tomar o filho da veneranda mulher, pois não veio rebento do segundo matrimonio. Carregou-me de manhã num ford-de-bigode, e de noite chegava a Barras a noticia de que Beata havia morrido, certamente do coração. A boa velha deixou-me rico. Fazenda de gado no Peixe, fazenda de gado e vazante em Marruás, sítios em Esperantina e Barras e bens outros de que não me recordo.

Transferido para Teresina meu pai, com a família, habitava casa alugada, mas acalentava o sonho de construir confortável residência. Vendeu as propriedades de minha mãe, que eram minhas, e construiu a espaçosa casa da rua Eliseu Martins, recebendo-a dos empreiteiros em setembro de 1933. Com a morte de Arimathéa a casa passou a viúva, cabendo-me outra por compensação. Nela meu pai trabalhava, descansava, e todos nós o admirávamos na sua alegria e no seu entusiasmo pela vida. Trinta anos depois, dela saia o bom do velho morto para a morada derradeira.

Minha madrasta morreu doze anos depois do marido. Os bens que ela possuía passaram a familiares seus. A mim não coube uma simples xícara de servir café. Nada quis nem me convinha reclamar. Os herdeiros venderam o imóvel.

Hoje me proibi de andar pelas imediações dessa casa de esquina, ampla e de relativo conforto. Dói-me o espírito vê-la como está dividida em vários compartimentos comerciais. A sala onde meu pai lia e escrevia brilhantes sentenças jurídicas agora expõe calcinhas intimas, sutiãs e mais que seja. Tudo se repartiu em lojas de variado tipo. A chamada sala de visitas, em cujas cadeiras se sentou gente importante, como José Américo, está desfigurada, serve de venda de tintas. As mangueiras frondosas desapareceram.

Fico a pensar na ambição dos homens. O dinheiro torna vil quem o ambiciona e o tem como deus. Pois aí está a que ponto relegaram a memória de Arimathéa Tito, meu pai, um dos mais admiráveis juízes do Piauí, reto, caráter sem nódoa, homem de bem, pobre, humilde, mas dedicado servidor de sua terra, havendo ocupado vaga do Tribunal de Justiça e lecionado na velha Faculdade de Direito.

A casa a que ele dedicou cuidados constantes, melhorando-a sempre que podia - e que tem muito da sua vida ilustre, tornou-se um balcão de dinheiro, com que se azinhavra a memória dos homens e das belezas de Teresina.

A tombação ou o tombamento é o remédio.


A. Tito Filho, 19/08/1988, Jornal O Dia

Nenhum comentário:

Postar um comentário