Era o ano de 1951. Dia 31 de janeiro, Pedro Freitas assumiu o cargo de governador do Piauí, eleito pelo antigo Partido Social Democrático (PSD). Na eleição realizada no ano anterior, venceu ele nas urnas, por maiorias de seiscentos e poucos votos, o candidato da União Democrática Nacional (UDN), Eurípedes Clementino de Aguiar, que já havia sido chefe do Poder Executivo no quadriênio 1916-1920.
UDN e PSD valiam ferrenhos e odientos adversários desde o ano em que foram criados no país, 1945. No Piauí, em festa de udenista, pessedista não punha os pés. Viviam os dois partidos em permanente furdunço de descomposturas recíprocas, pelos jornais.
Demais de tudo, Rocha Furtado, eleito pela UDN para governar de 1947 a 1951, muitas perseguições havia feito aos pessedistas, tanto na capital como no mais distante arraial de Pau Fincado ou Pindura Saia.
Também os derrotados por Pedro Freitas alegavam que a maioria de votos sobre Eurípedes teria sido prebenda do Tribunal Regional Eleitoral.
Tais circunstancias mais acirravam as odiosidades comuns. Os udenistas, apeados do poder, preparavam-se para campanha severa e ruidosa contra o novo governante. De sua vez, os pessedistas, quatro anos debaixo de taca e muita taca, lambiam os beiçoes na prelibação da vingança.
Nesse clima, assumiu o governo Pedro Freitas (31-01-1951). E nesse clima surgiu "O DIA" (01-02-1951), fundado por Raimundo Leão Monteiro, mais conhecido como Mundico Santídio, de apelido Mão de Paca. Tipo baixo, gorducho, pança grande, de faces vermelhonas. Defeituoso da mão direita, daí a alcunha que lhe deram, havia anos. Homem de muita inteligência prática. Foi professor do ensino médio. Viajado, conheceu a Alemanha. Não resta dúvida de que era hábil mecânico. Mulherengo. No jornal, fazia tudo, menos escrever. Sabia compor em linotipo, paginar, imprimir, trabalhos que realizava com maestria. Tinha o vicio do palavrão. Dizia-se ateu. Em roda de si, dez, doze colaboradores espontâneos, que dinheiro algum recebiam.
A verdade é que esse homem, temido por muitos, incorporou-se à história do jornalismo piauiense. O seu jornal o "O DIA" era lido e apreciado.
Na primeira fase, a folha do saudoso Mão de Paca teve como redator-chefe o competente Orisvaldo Bugyja Britto, conhecedor, estudioso, de memória invejável, linguagem asseada. Passados 27 anos, Bugyja ainda está, entre nós, lembrando os tempos principiantes do órgão de imprensa que ele ajudou a criar, a engatinhar e a crescer.
No começo, "O DIA" apresentou-se de tamanho pequeno. Quando ingressamos, por volta de 1952, no corpo de colaboradores, havia aumentado de alguns centímetros. Circulava dias de quinta-feira e domingo, manhã cedo. Oficinas no fundo do quintal da casa de residência do diretor e proprietário, num galpão, rua Lisandro Nogueira. Dele participamos na qualidade de colaborador, da mesma forma que Pedro Conde, Valdemar Sandes, Olimpio Costa e outros, cada qual no seu devido tempo. Mundico Santídio publicava os artigos com pseudônimo. A gente Fornecia os comentários sem assinatura, mas circulavam com nomes esquisitos (Desidério Quaresma), alatinados (Petrus Mauricius), à moda russa (Edgaroff) e de maneiras outras da invenção de Mundico.
Quando assumimos o lugar de diretor do Colégio Estadual do Piauí (hoje Colégio Estadual Zacarias de Góis), em 1954, por falta de tempo nos afastamos da atividade jornalística, a ela volvendo em 1959, no mesmo jornal "O DIA", com artigos de vários assuntos, publicados com a responsabilidade de nossa assinatura. Movemos intensa campanha contra o governo Chagas Rodrigues (UDN-PTB). Jornalismo vibrante, higiênico, estilo elevado, criticas de bom gosto. O jornal teve tiragem dobrada. Edificações esgotavam-se rapidamente. E recordamos o fato como circunstancia de justiça: Mundico Santídio ocasião alguma cortou uma linha de nossos escritos e nunca nos pediu que poupássemos as figuras governamentais, que, inclusive, lhe forneciam publicidade. Costumava dizer: artigo assinado, assinado está, logo...
Pelas colunas do jornal, fizemos campanhas memoráveis, entre as quais destacamos três: a dos professores injustamente exonerados por Chagas Rodrigues, e para eles ganhamos mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal; a defesa dos deputados Dirno Pires Ferreira e João Clímaco de Almeida, acusados do roubo de linotipos do IBGE. As máquinas haviam sido apreendidas por ordem de Chagas Rodrigues. Foram devolvidas. Finalmente, aquela em favor das prerrogativas do Tribunal de Justiça, sob a presidência de um homem corajoso, sem medo e sem mácula, Robert Wall de Carvalho, que pediu intervenção federal no Estado, com a finalidade de fazer com que o governo cumprisse mandado de segurança concedido ao advogado Raimundo Richard. Não se verificou a intervenção porque Chagas Rodrigues cumpriu a ordem.
Escrevemos hoje estas linhas sem nenhuma mágoa de Chagas Rodrigues, o jovem governador do Piauí no período 1959-1962, que tanto fez por sua terra e por sua gente, como chefe do Executivo e na qualidade de deputado federal mais de duas vezes. Era homem de visão. Bem intencionado e sincero com o povo.
Mil novecentos e sessenta e dois. Ano de campanha eleitoral. Chagas Rodrigues arrendou "O DIA" confiando a redação a jornalistas de sua escolha. Mais uma vez deixávamos de ser colaborador do órgão criado por Mundico Santídio.
Nosso caminho diário para o Liceu passava pela frente da residência de Raimundo Leão Monteiro, que, a esta altura, 1963, estava novamente dirigindo o jornal, encerrando o contrato com Chagas Rodrigues. Certo dia do mês de abril, pouco depois da morte de meu pai, manhazinha, seguíamos (no) rumo das aulas. Mundico, na calçada de sua residência, chamou-nos. Fez-nos crer que a autoria dos artigos contra nós, publicados noutro jornal da terra, pertenciam a ilustrado médico de Teresina, contra quem nos pediu que escrevêssemos um artigalhão de criticas impiedosas. Encomenda feita, encomenda realizada. O escrito saíu com pseudônimo. Mas o digno médico interpelou Mundico Santídio por intermédio da Justiça e Mundico não quis guardar segredo de redação nem assumir responsabilidade. Resultado: fomos aos bancos dos réus. Praticamos a própria defesa, com critério e ponderação. Expusemos que a responsabilidade de artigos sem assinatura sempre coube a direção do jornal, mas não fugimos ao critério moral de afirmar que éramos o autor material do artigo. Nosso acusador foi o saudoso amigo Celso Pinheiro Filho. Fomos absolvidos pela unanimidade dos jurados. Perdemos a amizade do médico, injustamente ofendido, e ainda hoje a consciência nos diz que obramos mal, escrevendo para satisfação de malquerenças alheias. Não ficamos agastados com Mundico Santídio. Dentro em nós, soubemos desculpá-lo. Ao menos reclamamos contra a sua atitude. Apenas nos afastamos do jornal.
A memória não nos acode agora, para que registremos o ano em que a valente folha passou a pertencer a Octávio Miranda, comprada a Mundico Santídio. Sabemos que o "O DIA" teve redação e oficinas num antigo templo protestante da rua Areolino de Abreu, prédio de esquina, no cruzamento com a rua Sete de Setembro. Orientou-o a cultivada inteligência e grande capacidade de trabalho de José Lopes dos Santos. Em maio ou junho de 1966, porém, comandava-lhe a redação o ilustre e corajoso Deoclécio Dantas, que nos fez convite para a escritura de artigos de fundo, orientadores da opinião pública. Armamos ali tenda noturna de trabalho. E diariamente escrevíamos os chamados editoriais do jornal.
Convivemos com Octávio Miranda dois anos, mais ou menos, em "O DIA". Havia entre nós, de vez em quando divergências. Mais de uma ocasião deixamos a tenda e mais de uma ocasião a ela voltamos. Tínhamos e temos muito amor ao jornal, que circulava diariamente e constituía obrigatória leitura nossa. Diariamente "O DIA" se modificava para melhor. Intimamente, gostávamos de Octávio. Admirávamos a sua persistência em dotar Teresina de um bom jornal. O homem tinha qualidades invejáveis. Uma delas era sentar o rabo na rapadura e da rapadura não erredar pé.
Conhecemos Octávio Miranda como militar, cioso da farda. Depois, como deputado estadual, entre 1947 e 1951.
No jornal, procurávamos examina-lo nas atitudes e nos gestos. Superficialmente, parecia arrogante. Tinha fala forte, autoritária. Gostava de reunir a equipe para combinar orientações, e definir serviços.
Por dentro, entretanto, outra individualidade. Boníssimo sujeito. Caridoso, de caridade cristã. Dava-se ao próximo e ao próximo se dá sem querer recompensa ou agradecimento. Operário doente, jornalista necessitado - lá está ele com a ajuda, com o gesto de conforto. Em 1966, tomamos avião aqui para casamento no Rio. Octavio não nos faltou com a cooperação financeira.
Homem fora-de-série, emprega milhões para dar a Teresina um jornal moderno. A seu lado, a equipe inteligente, trabalhadora, dedicada, que sabe fazer jornal, do operário ao editor.
Tem Octávio Miranda um coração pleno de bondade. Idealista objetivo, sempre imaginou fazer cousas bem feitas. E assim vem realizando com "O DIA", uma obra humana de que ele se orgulha, de que nós todos nos orgulhamos, diariamente, quando o jornal sai com as noticias e o bom bocado dos artigos de interpretação e o excelente repasto das notáveis reportagens. Condimenta-o ainda o saldo de um humorismo fino, elegante, caprichado, nos dias de domingo.
Nele se destaca o sujeito de iniciativa, de visão ampliada, de largos horizontes para conceber e realizar. Quando viu Teresina espremida entre os dois rios, inventou o Jóquei Clube. E do Jóquei nasceu uma cidade, uma boniteza. Se ainda vivo quando Octávio morrer, haveremos de lutar para que o Jóquei Clube passe a chamar-se Octávio Miranda - gesto de justiça muito nobre.
Hoje, 1º de fevereiro, "O DIA" faz 39 anos de serviços a Teresina, que está de festas, aplaudindo o jornal que já se integrou à paisagem espiritual da cidade fundada por Saraiva.
Continua hoje orientado por Octávio, com a ajuda desse dinâmico Valmir Miranda. Editor, José Fortes, jornalista até debaixo d'água, consciencioso, redator de boa linguagem, argumentador sem medo. E muita gente boa, humilde, do meu tope, humilde mas audaciosa.
A. Tito Filho, 01/02/1990, Jornal O Dia.
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