Corria o ano de 1972, em que se salientavam três acontecimentos da vida cultural brasileira: os 400 anos do poema épico de Camões, português mas cidadão do mundo, os 75 anos da Academia Brasileira de Letras e os 50 anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Era no primeiro governo de Alberto Silva e este me fez carta de convite para que a administração e a Academia Piauiense de Letras festejassem tão ilustres acontecimentos. Arrumei a sacola com umas duas cuecas, o mesmo tanto de blusões e surrada calça de casimira ordinária - e no aviãozão de jato viajei ao Rio incumbido de convidar os oradores das solenidades, cada uma a seu tempo. Levei os ofícios governamentais. Primeiro, Martins Napoleão falaria em setembro, sobre o célebre Os Lusíadas. Um mês depois, seria o segundo festejo. Palestra de Odylo Costa Filho. Os dois convocados aceitaram a missão e assumiram o compromisso respectivo. Faltava o terceiro, o muito querido, o poeta sem peias, o papa da poesia nacional - Carlos Drummond de Andrade. Procurei-o no seu jornal, em que deliciava o Brasil com a ironia de crônicas inimitáveis. Disseram-me que era homem difícil de encontrar, mas me forneceram endereço e telefone. Telefonei-lhe do hotel, disse-lhe que tinha incumbência do governador do Piauí, marcou encontro na residência, fixou dia e hora, e eu fui dar ao apartamento de Copacabana, lugar de repouso do monstro sagrado. Recebeu-me afavelmente, de esmerada educação. Em sala ampla, de muito conforto, tomei assento em sofá bom de descanso e disse-lhe do meu recado. Entreguei-lhe a correspondência de Alberto Silva.
Ele a leu, sorriso safado no canto direito dos lábios:
- Se bem entendo, o governador do seu Estado quer que eu faça uma conferencia sobre a Semana de Arte Moderna. Mas, professor, diga-lhe que eu nunca fiz palestra, discurso, conferencia, nada desse tipo de cousa, e não seria interessante começar pelo Piauí. Esclareça-me um ponto, professor, como o governador Alberto Silva teve a lembrança do meu nome?
Eu fiquei chateado com as observações de Drummond. Diabo! A recusa me deixou pequenino, aflito, mas o negócio de não começar a fazer discurso logo no Piauí me arrasou, eu que estava repleto de orgulho que a gente sente quando se encontra em companhia de pessoa graúda. Depressa, vingança na ponta da língua, dei a resposta:
- Poeta, o governador teve a lembrança do seu nome por razão simples e generosa, pois ninguém o conhece no Piauí e ele pensou em projetá-lo por lá, junto aos piauienses.
Carlos Drummond de Andrade, a meu lado, espalmou a mão, desceu-a na minha coxa, num estalo, e consentiu no meter das buchas:
- Estamos quites, professor, estamos quites!
E riu, um riso de boca não muito aberta, assim como que encabulado.
A. Tito Filho, 17/04/1988, Jornal O Dia.
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