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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

CABEÇA DE CUIA

Faz poucos anos, Josias Carneiro da Silva publicou obra-prima, intitulada SIMPLÍCIO, SIMPLIÇÃO DA PARNAÍBA e ainda não cessaram os merecidos elogias que recebeu. Depois publicou livro de bichos lacustres e fluviais, parecidos com as que outras águas oferecem como o caboclo-d'água do São Francisco, o urarau ou gigantesco do Paraíba do Sul, a boiúna e o boto do Amazonas.

O folclore revela a vida coletiva na sua cultura material e espiritual. As águas constituem fonte de lendas, mitos, fantasias, imaginações. Na Bahia, os pescadores celebram o despacho da mãe-d'água, cerimônia em que se atiram oferendas ao mar para que se libertem de infortúnios na pescaria. A tradição mediterrânea está nas sereias, a que Homero se referiu: a Iara tem encantos irresistíveis, que o genial piauiense José Newton de Freitas pôs num poema, ao cantar o jangadeiro:

Enquanto seus filhos
ficaram chorando
ele está morando,
beijando, beijando
a iara bonita
no fundo do mar...

Josias reviveu monstros aquáticos, e realizou o seu mais brilhante estudo com o CABEÇA DE CUIA, que o talentoso João Alfredo de Freitas colocou em "Lendas e Superstições do Norte". Agora novamente, num trabalho erudito, o monstro aterrorizador de pescadores e donzelas dos rios Poti e Parnaíba figura como atração principal.

O abalizado folclorista ofereceu nova interpretação à crendice popular - a de que o CABEÇA DE CUIA, estuprador da própria mãe, foi por esta condenado a viver nos rios referidos e para o desencanto tinha que deflorar sete Marias, proeza hoje dificílima porque, como é óbvio, não existem mais mulheres virgens.

A lenda, segundo Josias, diz COMER - sete Marias, e as marias tinham receio de amar a medo de gravidez, pois a pílula anticoncepcional começa na década de 60. Na antiguidade mitológica a fecundação independia do contato masculino e das vias naturais receptivas - como sustenta Câmara Cascudo. Houve a crença da gravidez SINE CUNCUBITO. A cobra-grande amazônica engravida cunhãs sem cópula, como acredita o povo. Existiu época da fecundação oral e por causa disto se emprega comer na qualidade de ter relação sexual.

Cascudo conta que numa igreja do Recife existe um quadro, em que Nossa Senhora ajoelhada ouve o anjo mensageiro de Deus, e das alturas, desce em diagonal um raio luminoso, alcançando a orelha esquerda da mãe do Altíssimo. A fecundação teria sido por processo auricular. E o povo logo criou o conhecido dito EMPRENHAR PELOS OUVIDOS.

O nosso saudoso Odylo Costa Filho fez soneto bonito, na CANTIGA INCOMPLETA. Fala do poder sexual das águas do Parnaíba:

Naquele tempo, nupciais e puras,
as mulheres vestiam-se de peixes,
uma camisa ou nada sobre a pele, nádegas, peito, púbis ofertados,
e o rio era possuído e as possuía
no mergulho auroral entre os barrancos.

D'Humiac escreveu obra curiosa sobre algumas grandes lendas da humanidade, afirmando que o mistério do mundo se explica pela imaginação e pela razão. Concluiu que os velhos mitos estão morrendo, porque a ciência os derrota com a verdade.

Josias antevê o desaparecimento das lendas e fantasias, porque o próprio povo, que a cria, nelas passa a desacreditar, com o correr dos tempos, através da ciência.

A imaginação passa a ser a substituída pela razão.


A. Tito Filho, 22/05/1988, Jornal O Dia

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